Reporting
Quebradeiras de coco babaçu pedem respeito à legislação que protege atividade ancestral
(Do InfoAmazônia, no Maranhão e no Tocantins) – Sete mulheres, sentadas no chão de uma cabana, quebram cocos. Clac, clac, clac… O som dos paus de madeira ecoa com força em Sumaúma, uma comunidade rural de serras verdes em Sítio Novo, no Tocantins. As quebradeiras de coco babaçu abrem os cocos para extrair um punhado de amêndoas que contêm embriões de futuras palmeiras. Os cocos são pequenos, têm forma de seios e mamilos em suas extremidades. Do casco, produz-se carvão; das amêndoas, extraem-se óleos e leite de coco; da polpa interna — o chamado mesocarpo —, obtém-se uma farinha nutritiva para pães, bolos e suplementos vitamínicos. E, das folhas das palmeiras, são feitos artesanatos e telhados para as casas.
A luta dessas mulheres de origem quilombola, afrodescendente e indígena pelo direito de preservar a tradição, que garante a sobrevivência de seus corpos e de uma cultura ancestral, vai além da habilidade de quebrar cocos. Nas últimas quatro décadas, em defesa do agroextrativismo, elas redigiram e propuseram leis para proteger sua atividade. Desde 1997, com apoio jurídico, elaboraram mais de dez projetos de lei entregues a legisladores. Hoje, ao menos 18 leis municipais e duas estaduais foram aprovadas, enquanto pelo menos cinco projetos em andamento buscam garantir o direito de acesso dessas mulheres aos babaçuais.
Em 1991, o grupo assumiu a sua primeira forma de movimento organizado, com a criação da Articulação das Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu, no encontro interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, em São Luís, Maranhão. Em 1995, foi fundado oficialmente o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB).
“A marca do MIQCB é a elaboração da Lei do Babaçu Livre em alguns estados e municípios, que permite a extração desse coco e o direito ao seu uso como recurso natural comunitário, não privatizado. Enquanto outros movimentos rurais e comunidades tradicionais do Brasil, como os indígenas, que concentram-se no reconhecimento territorial, as quebradeiras propuseram, inicialmente, o extrativismo agroecológico do coco, além de restrições legais ao corte de suas palmeiras”, explica Aurélio Vianna, antropólogo e coordenador da fundação The Tenure Facility, associada ao movimento MIQCB.
Os estados que contam com a Lei Babaçu Livre atualmente são Piaui, Tocantins e Maranhão. Neste último, a lei só dá direito a entrar em terras públicas e não privadas. São 18 os municípios em que a lei foi aprovada; em outros dois, está em tramitação.
No Tocantins, se a quebradeira de coco não conseguir acessar uma terra privada para extrair o coco, ela pode fazer a denúncia na Polícia Civil, informou Carlos Geovanne Pinheiro Santos, Secretário Executivo de Meio Ambiente do município de São Miguel do Tocantins. “Geralmente, a Polícia Militar Ambiental entra em ação indo na propriedade do fazendeiro para conscientizar ele sobre o direito das quebradeiras e informar sobre o respaldo previsto em lei estadual”, explica o secretário. Em crimes mais graves, como grave ameaça, violência física ou outros agravantes, o caso é encaminhado para outros órgãos, como o Ministério Público.
Vianna destaca que a luta das quebradeiras de coco babaçu pela garantia de acesso ao recurso natural pode ser comparada às legislações que defendem, por exemplo, a água e os minérios, que possuem leis próprias para exploração independente de onde estiverem: “isso é um bem comum, e não é nem um bem comum em geral. É um bem de quem vive disso e isso tem a ver com a cultura”, afirma o pesquisador. “Essa grande marca afirma um direito que muitas vezes não é visto sobre as propriedades privadas existentes, isso é uma super inovação”, emenda Vianna.
No papel, as legislações garantem a essas mulheres o direito de coletarem o babaçu nos seus campos naturais, independente de onde estão. Mas, na prática, a garantia da lei esbarra em porteiras fechadas das fazendas, às vezes, com cercas eletrificadas. Em casos mais graves, as quebradeiras são ameaçadas. A efetiva aplicação da lei depende muito do local, das autoridades locais e dos proprietários das fazendas.
Maria Ednalva Ribeiro da Silva, além de quebradeira e avó de 5 netas, é uma das representantes do movimento no Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, em Brasília. De São Miguel do Tocantins, no interior do estado, ela viaja até Brasília cerca de seis vezes ao ano para discutir propostas agrárias e ambientais a serem incluídas em políticas públicas voltadas para as quebradeiras de coco babaçu. “Hoje, falamos do acesso aos cocos e da defesa dos babaçuais sob uma perspectiva de direito socioambiental”, explica Maria Ednalva.
No Tocantins, onde ela vive, a lei do Babaçu Livre foi aprovada em nível estadual e em quatro municípios (São Miguel do Tocantins, Praia Norte, Buriti e Axixá), mesmo assim as barreiras para coletar o fruto seguem impondo dificuldades: ”já fui uma mulher ameaçada pelo latifúndio”, lembra.
“Antigamente, era melhor porque não tinha muita essa quantidade de veneno. Hoje tem muito veneno na terra e nas palmeiras”, explica a quebradeira ao apontar o uso de agrotóxicos nas regiões dos babaçuais, afirmando que nesses casos é preciso “lavar bem para sair o resíduo do veneno”.
Antes da criação do MIQCB, Maria Ednalva participou de uma luta histórica: a formação sindical de trabalhadores rurais na década de 80. “Uma noite, eu voltava para casa depois de levar comida para meu marido que trabalhava no campo e uma mulher da organização Pastoral da Terra bateu à minha porta e disse que queria falar conosco para nos organizarmos em um sindicato de trabalhadores”, lembra.
Já na década de 1990, a história do Brasil era outra. Naquele momento, as lutas por conflitos de terra e os sindicatos estavam fortalecidos. Em 1997, a primeira iniciativa de proposta de uma lei federal de livre acesso ao babaçu foi levada ao Congresso Nacional. “Ter uma lei única em todo o território do Brasil é um dos objetivos do Movimento de Quebradeiras de Coco Babaçu. O maior obstáculo até agora foi na Câmara dos Deputados, que argumenta não poder impor condições aos proprietários privados de terras para que as quebradeiras coletem os cocos em suas fazendas”, explica a advogada e assessora do MIQCB, Renata dos Reis Cordeiro.
Em 2022, o movimento alcançou uma vitória extraordinária. No Piauí, foi aprovada uma versão da lei que reconhece as comunidades de quebradeiras de coco babaçu como povo tradicional e modo de vida próprio. A então governadora Regina Souza (PT), também quebradeira, apoiou a pauta legislativa dessas mulheres. Durante os nove meses que esteve no governo – pois era vice-governadora, facilitou a entrada desse projeto na Assembleia Legislativa do Piauí.
“Nessa lei, a atividade de extração agroecológica é considerada patrimônio cultural. Daí derivam outros direitos, como o acesso livre ao coco babaçu e a possibilidade de lhes reconhecer títulos territoriais”, conclui Cordeiro.
A lei foi publicada em 9 de dezembro de 2022 e o texto inclui conceitos de segurança alimentar e nutricional como direitos das quebradeiras de coco babaçu, além da preservação ambiental dos babaçuais.
Protagonismo feminino
“As palmeiras são como nossa mãe. Nos dão abrigo, alimento, é por isso que as protegemos”, diz Dona Francisca Pereira Vieira, quebradeira de coco e uma das coordenadoras do MIQCB em Tocantins. São mais de 400 mil mulheres – na maioria idosas – que há 33 anos se organizam para extrair o coco, usá-lo para consumo familiar e economia solidária.
Essas mulheres também denunciam o corte, queima e envenenamento dos babaçuais, que se alastram por áreas amazônicas e do Cerrado em quatro estados: Tocantins, Maranhão, Piauí e Pará, por cerca de 25 milhões de hectares de babaçuais.
Entre essas mulheres e as palmeiras existe uma relação mútua e afetiva. O tempo que leva para cair o cacho das palmeiras é de nove meses, o mesmo ciclo reprodutivo da vida humana. “Às vezes, consultamos , são fonte de sabedoria. Queremos preservá-las”, conta Francisca, que aos 75 anos também vê como desafio engajar mais a juventude para “perpetuar o trabalho e garantir a existência dessas florestas”.
Quando caem os cocos, as quebradeiras entram em ação. Conceição Barbosa da Silva caminha pela floresta densa e úmida, nos arredores de Sumaúma. Há cocos espalhados pelo caminho. Carrega uma cesta na cabeça, onde os junta. Leva um pequeno machado na mão com o qual corta folhas e alguns caules. “Aos 6 anos comecei a acompanhar minha mãe nessa tarefa. Aos 12, participei das reuniões da Comissão Pastoral da Terra (vinculada à Igreja Católica) onde se discutiam os problemas dos trabalhadores rurais”, lembra Conceição, que é coordenadora de base do MIQCB no Tocantins.
Ser uma quebradeira de coco ativa uma identidade cultural, uma ancestralidade feminina que se combina com a mobilização socioambiental. Mães, avós, bisavós praticaram essa atividade e lutaram pelo acesso às terras.
“É um saber que passa de geração em geração. O movimento MIQCB é uma forma organizativa única porque amplia os direitos de reconhecimento territorial e delas como comunidade”, destaca a antropóloga e pesquisadora Cynthia Carvalho Martins ao referir-se às quebradeiras.
A pesquisadora destaca as várias mudanças significativas no movimento das quebradeiras de coco babaçu, refletindo sobre sua própria relação de longa data com o movimento e como este evoluiu. Ela nota a expansão das temáticas e áreas de atuação do movimento, a intensificação dos conflitos e a importância crescente do protagonismo feminino e das questões de gênero.
“Houve uma ampliação na temática quanto à própria área de atuação do movimento”, aponta Cynthia Martins. “Porque as coordenadoras são as próprias quebradeiras de coco babaçu. Essa representatividade também é de quebradeiras de coco de diferentes regiões do país, que também dá uma possibilidade de ter demandas que são diferenciadas, conflitos que são diferenciados”.
Incentivos para a produção
No interior da cabana, um grupo de quatro mulheres idosas coloca as amêndoas em uma grande frigideira, em fogo médio. Após torrá-las, coam e levam para moer. Elas têm uma atitude de cuidado, amor e respeito pelo processo de produção. “Daqui sai o óleo que vendemos através de nossa cooperativa ou individualmente”, conta Conceição Barbosa da Silva. O óleo extra virgem de 500 ml engarrafado tem um rótulo com a marca MIQCB e o desenho de uma mulher com turbante e um cacho do fruto. Cerca de 8 a 10 litros são vendidos por aproximadamente R$ 60,00.
Mas as realidades variam entre os diferentes estados. A filial do Piauí conta com quatro unidades de produção do mesocarpo – de onde se extrai a farinha – e resulta em uma produção mensal de 600 kg. No caso do óleo extra virgem, há uma fábrica no município de Esperantina e no caso do azeite, há oito minifábricas com pequena estrutura de moagem e cozimento nos municípios de Esperantina, Joca Marques, Madeiro, Luzilândia e São João do Arraial. São casas reformadas que receberam apoio de fundações para sua adaptação a pequenas fábricas. Lá, grupos de 12 quebradeiras conseguem produzir cerca de 3.500 litros de óleo de coco babaçu por mês.
Elas também estão no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do Governo Federal, que compra produtos de agricultores familiares em quantidade e os destina para merendas escolares, por exemplo. Já no caso do Piauí, a Secretaria de Assistência Social adquire produtos que são destinados para famílias em situação de vulnerabilidade alimentar.
No entanto, para as quebradeiras do Tocantins, a situação é outra. Entrar nesses programas tem sido difícil. “Alguns de nossos produtos foram suspensos. Argumentam que requerem certas licenças, selos que dependem de outros órgãos e o processo se complica”, afirma Silvânia Nunes da Paixão, da comunidade de Olho D´Água e também coordenadora do MIQCB.
Já em São Miguel do Tocantins, um convênio de cooperação que apoia os produtos e subprodutos das quebradeiras foi firmado com o município. “Buscamos incluí-las em um plano de desenvolvimento rural”, afirma Mauro Fragoso, secretário municipal de agricultura.
Quem compra os produtos delas e de qualquer empreendimento comunitário colabora para a preservação das florestas, o fortalecimento da economia solidária e a geração de trabalho e renda.
Quando não estão quebrando coco e produzindo óleos e derivados, essas trabalhadoras rurais estão em suas plantações de feijão, bananas, milho, criando galinhas nos quintais de suas casas. Parte do tempo também é dedicado à gestão do MIQCB. “Entre o trabalho e a casa, faço reuniões online sobre vários temas como planejamento anual e participações institucionais. Com meu marido, sempre dividimos as tarefas, especialmente cozinhar, que eu não gosto”, comenta Dona Francisca com um sorriso.
O movimento gerou seu próprio mecanismo de financiamento para não depender de terceiros. Criaram o Fundo Babaçu com recursos econômicos nacionais e da cooperação internacional, e que fortalece as mulheres do movimento em todas as regiões onde ele está inserido. Começou com o apoio da Fundação Ford, depois do Fundo Amazônia e Tenure Facility. Eles destinam-se a projetos socioambientais e de defesa de direitos, implementados por organizações de mulheres.
Desde sua criação, o Fundo Babaçu lançou quatro editais, capitalizando valores para realização de projetos socioambientais por grupos e organizações comunitárias de quebradeiras de coco babaçu. Hoje, o fundo é gerido de forma participativa pelo Comitê Gestor do Fundo Babaçu, que envolve diversas organizações parceiras do movimento.
As quebradeiras deixam marcas nos babaçuais, nas comunidades sociais e no mundo. “Sem nossa contenção e trabalho em rede, todas por um mesmo objetivo, não estaríamos onde chegamos”, afirma Dona Francisca ao se retirar do local do MIQCB em Tocantins, numa tarde de sol radiante, no assento traseiro de uma moto que levanta poeira pelas ruas de São Miguel.
*****
Com a colaboração de Fábio Bispo/InfoAmazonia na versão em português
Equipe do Projeto: Soledad Dominguez e Gabriele Roza
Imagens e vídeo: Gabriele Roza
Texto: Soledad Dominguez
Edição e adaptação em português: Fábio Bispo e Carolina Dantas
Esta versão da reportagem é uma adaptação de InfoAmazônia da matéria publicada originalmente no El País, um projeto jornalístico apoiado pelo Howard G. Buffet Fund for Women Journalists da International Women ‘s Media Foundation.